— é, sobretudo, na linguagem que o ser do Dasein habita e é habitado.
Kadu Santos
Um retorno ao lugar poético da palavra é, em um sentido mais amplo, o meu gesto no ensaio “Linguagem, verdade e a-gente — um retorno ao lugar sagrado”. A voz da palavra sempre me requisitou sua atenção e eu não me furtei de lhe dar ouvidos. Se me convidares a pensar sobre o início de tais ouvidas — lamento profundamente —, não sei “o quando” da origem. No entanto, sinto como se cada escuta, “já-sido” interpelante, sempre me requisitou. Digo, desse modo, pela palavra na terceira pessoa da palavra: enquanto palavra derradeira, o amor em-si-mesmado pela palavra nos une em pertença na palavra e desse modo fecundamos. Livres em [In] saga, a palavra se faz amorosa e num só tempo nos faz amorosos no lugar do seu dizer e, talvez ainda mais, amorosos em toda a liberdade que essa relação com a palavra e o seu sentido nos dá.
Este é, portanto, um dos motivos de ter enquanto menina dos meus olhos ser (para) a linguagem. Não esta ou aquela linguagem, no mais da vezes, aprisionada na gramática. Muito menos a palavra dependentemente violentada pela língua. É, ao contrário, a palavra que se recolhe na palavra que abre. Abre o que vem à intuição no sentido próprio da liberdade de intuir. O olho da palavra brilha nela. Tais sentidos me guiam enquanto existo posto e disposto na palavra em seu dictum. O dizer da palavra guia, como quem cegamente segue, na mesma proporção que “lugariza” no dizer da “Linguagem, verdade e a-gente” — sobretudo porque gesta em nós — “um retorno ao lugar sagrado”.
Dias desses, habitando o lugar sagrado, me deparei com as palavras de Gadamer em seu dizer sobre a universalidade humana assentada na experiência hermenêutica. Foi lindo ver “o como” eu mesmo fui capaz de experimentar o vigor da palavra pelo dizer de Gadamer. Ele descreve sobre um diálogo com Derrida relativo ao pensamento de Heidegger. Eu me ative muito mais à região poética das palavras de Gadamer (2007, pp. 86-87) do que propriamente ao objeto do seu texto. Ele diz:
“[…] o diálogo que nós somos não é nenhum diálogo que termina.”
Só que, estranhamente, o próprio enunciado de Gadamer é pontuado no final para outro período se enunciar:
“Nenhuma palavra é a palavra derradeira…”
Num primeiro momento a palavra de Gadamer encerra a palavra em cada período onde a palavra nem é derradeira nem primeira. Isso “justifica” a essência do dizer da palavra, em seu quid, quando encontrada no diálogo entre uns e outros. Em meu ensaio, conclamo na hermenêutica de Heidegger o canto festa de paz de Hölderlin que diz: “E escutamos uns aos outros; em breve, somos porém canto.” Ao conclamar Hölderlin, faço pelo seu dizer, por sua palavra, por sua poesia. Na unidade do poetar de Hölderlin há o pôr-se do nosso ser para o dis-pôr na revelação da escuta à palavra na poesia. Heidegger, ao que me parece, ouviu muito bem o poeta.
Mas, por que a poesia nos fala mais profundamente?
E mesmo assim; por que só alguns poucos escutam o dizer poético?
A experiência humana está limitada ao âmbito da região compreensiva de cada Dasein. Cada experiência factica constitui o ente que existe como centro da (im)própria compreensão de ser. Isso quer dizer que toda compreensão se encontra adstrita a uma posição prévia onde ela mesma, isto é, a compreensão, se faz na medida em que se dá. Não são os limites do conhecimento balizados nesta ou naquela “teoria do conhecimento”, mas os próprios limites do ente que em seu ser finito se defronta com o seu destino. Não é à toa que Gadamer fala sobre o modo como as experiências humanas se encontram assentadas nas interpretações do mundo. Experiências hermenêuticas — em cada caso — são universais para a universalidade compreensiva. No limite, o que é universal são os limites da palavra enunciada no diálogo articulado na vontade de verdade em a-gente. Resta, no diálogo que se dá entre uns e outros, o retorno ao lugar sagrado.
A vontade por sua vez se faz desejante. Enquanto desejante, deseja-se em-[In]-no desejar. Ser desejante é um modo de ser no qual — aqui e ali — já nos mantemos. Há para o diálogo, centrado na articulação das palavras, um desejo de gozo. O gozo se faz no fim do diálogo. Esse fim só é possível pela vontade, disposição sem a qual as universalidades balizadas nos enunciados jamais poderiam desejar e, portanto, findar. As universalidades estão limitadas na finitização interpretante do ser como mera presença posta sob o domínio da técnica. O que nos limita, em cada caso, a escuta da dicção poética? Por que as nossas universalidades compreensivas são tão limitantes? Seria por este ente ser finito em seu ser?
Na escuta poética não há limites. Esta seria uma sentença que de maneira pragmática responderia a primeira questão. No entanto, uma escuta é sempre escuta em vista de um ente que existe em virtude [Worrumvillen] de si como posto e disposto no mundo sem causa ou ocasião e, desse modo, dejectado. Como não haver limites de compreensão neste pôr-se? Curiosamente, os limites são limites que constituem o ser deste ente em seu “aí”. Dejectado, ele-“é-(ser)”-seu-limite. No limite de seu ser a unidade temporal da compreensão antecipadora já-sendo-em-um-mundo e junto-a-entes intramundanos lhe abre temporadas, até que seu ser-no-mundo deixe o temporal e as temporadas porvindouras. Este ente deixa de ser.
Quando Gadamer (2007, p. 86) diz que “[…] a universalidade da experiência hermenêutica segue lado a lado com a efetiva limitação humana”, bem como os limites que são “[…] colocados pela nossa comunicação…” pode-se, com transgressão, compreender que o seu peso relativo aos limites das experiências humanas se encontra na articulação da linguagem e, mesmo assim, parece haver para Gadamer o esquecimento dos limites constitutivos das universalidades do ente posto no plano do ser naquilo que lhe limita não só como compreensão que se articula e se enuncia, mas também como limitação temporal do seu ser enquanto ser-já-sido-para-seu-fim.
Razões como estas abrem para o Dasein a tragicidade da existência e a põe à mostra sob a luz da palavra poética em sua regência. A palavra poética ilumina sem ser pretensiosa. Ela se ex-tende no sentido, e por ser assim, a palavra poética permanece essenciando. Já escrevi em outras ocasiões que: — é, sobretudo, na linguagem que o ser do Dasein habita e é habitado. Linguageiramente o dizer poético embala de forma intermitente e interminável nossos diálogos enquanto vivifica a vida.
Se a palavra poética nada diz — me inquieta, então, a pergunta: — como seria um dizer sobre a palavra que nada diz?
REFERÊNCIAS
Hermenêutica em retrospectiva, volume II – A virada hermenêutica. Tradução de Marco Casa Nova. Editora Vozes/RJ.
A essência da linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback Vozes, Rio de Janeiro. Universitária São Francisco: São Paulo, 2003.
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