1. Apontamentos biográficos
Jean-Paul Charles Aymard Sartre, um dos principais expoentes do existencialismo, nasceu em 21 de junho de 1905, em Paris. Filho de Jean-Baptiste Marie Aymard Sartre e de Anne-Marie Schweitzer. Com o falecimento de seu pai, em 1906, ele e sua mãe se mudaram para a casa de seu avô, Charles Schweitzer, em Meudon, na periferia sudoeste de Paris. O avô de Sartre era tio do missionário médico Albert Schweitzer e professor de alemão na Universidade Sorbonne.
Sartre estudou no Lycée Henri IV, em Paris, e, mais tarde, após o novo casamento de sua mãe, passou a cursar o Lycée de La Rochelle. De lá, Sartre foi para a École Normale Supérieure, na qual se formou em 1929, ano em que conheceu Simone de Beauvoir, com quem viveria por toda a vida.
Foi professor de filosofia, lecionando em colégios em Le Havre, Lion e Paris, tendo exercido também atividades como dramaturgo, escritor, ativista político e crítico literário.
Na década de 1930, teve contato, através de Aron e Lévinas, com a fenomenologia de Husserl e Heidegger, tendo se aprofundado na obra de Husserl entre 1933 e 1934.
Durante a Segunda Guerra, esteve preso entre 1940 e 1941, período em que se dedicou ao estudo de Heidegger e à produção literária.
Figura proeminente no pensamento de sua época, atuou na resistência francesa em 1943, e chegou a defender Martin Heidegger das acusações de apoio aos nazistas, alegando que a importância da filosofia de Heidegger devia ser separada de suas ideias políticas.
Em 1945, fundou a revista literária e política Os Tempos Modernos, junto com Simone de Beauvoir, Maurice Merleau-Ponty, e outros intelectuais.
Politicamente engajado, Sartre simpatizava com o marxismo e até 1956 era entusiasta da antiga União Soviética, mas sem nunca ter ingressado no partido comunista.
Em razão de suas convicções, valorizando sua independência intelectual e pessoal, Sartre recusou o prêmio Nobel de Literatura, em 1964, afirmando que a láurea comprometeria sua autonomia enquanto escritor e filósofo.
Nos anos 1970, Sartre foi um dos fundadores do jornal Libération, que foi lançado em 1973. Contribuiu também com o jornal France-Soir e com a revista L’Express.
Manteve-se politicamente ativo durante toda sua vida, sendo a favor da resistência contra a guerra da França na Argélia, atuando ao lado de Bertrand Russel contra a guerra do Vietnã e apoiando os movimentos estudantis franceses de 1968.
Sartre escreveu obras em diferentes gêneros, como filosofia: O Ser e o Nada (1943), O Existencialismo é um Humanismo (1946), A Transcendência do Ego (1936), Esboço para uma Teoria das Emoções (1939), O Imaginário (1940); literatura: A Náusea (1938), O Muro (1939), Os Caminhos da Liberdade (trilogia, 1945/1949); teatro: As Moscas (1943), Entre Quatro Paredes (1944), A Prostituta Respeitosa (1946), As Mãos Sujas (1948); ensaios e crítica: Reflexões sobre a Questão Judaica (1946), O Que é a Literatura? (1947), Saint Genet, Comediante e Mártir (1952), Crítica da Razão Dialética (1960); autobiografia: As Palavras (1964).
Sartre faleceu em 15 de abril de 1980, em Paris, por complicações de hipertensão arterial e edema pulmonar. Por volta de 50000 pessoas participaram de seu funeral, demonstrando sua popularidade.
2. Influências
A filosofia de Sartre contou com influência significativa de Søren Kierkegaard, Friedrich Nietzsche, Edmund Husserl e Martin Heidegger.
Søren Kierkegaard, considerado o primeiro filósofo existencialista, influenciou Sartre com suas ideias sobre a angústia, o desespero e a fé. Ao contrário de Kierkegaard, teólogo e cristão praticante, Sartre reinterpretou suas ideias à luz do ateísmo.
Kierkegaard influencia Sarte em relação a conceitos como liberdade, angústia e responsabilidade, por exemplo, enquanto Kierkegaard diz “A angústia é a vertigem da liberdade” (1844), Sartre afirma que “Estamos condenados a ser livres.” (1943)
Friedrich Nietzsche, com sua crítica ao niilismo e sua ênfase na criação de valores próprios, influenciou Sartre em sua visão de liberdade e autenticidade.
A ideia de Husserl de que “toda consciência é intencional” foi adotada e expandida por Sartre para explorar a experiência humana.
E é também inegável a influência de Ser e Tempo (1927), de Heidegger, no pensamento de Sartre, que incorporou muitas de suas ideias sobre a existência autêntica e a temporalidade.
Sartre desenvolveu uma filosofia que enfatiza a liberdade, a responsabilidade individual e a autenticidade.
“O homem está condenado a ser livre; porque, uma vez lançado ao mundo, ele é responsável por tudo o que faz.” (Sartre, 1943)
Seus conceitos têm uma aplicação significativa no campo da psicoterapia existencialista, onde se busca compreender e tratar as questões existenciais dos pacientes.
3. Sartre e a fenomenologia
Sartre rejeita o dualismo cartesiano, defendendo uma visão unificada da consciência e do corpo. Em suas palavras: “O homem é uma totalidade corpo-espírito” (1943).
Edmund Husserl, filósofo alemão considerado o pai da fenomenologia, propôs uma descrição cuidadosa e sem preconceitos dos fenômenos da experiência consciente, o chamado método fenomenológico, que se tornou uma das influências do pensamento de Sartre, como indicam suas obras Imaginação: uma crítica psicológica (1936), Esboço de uma teoria das emoções (1939) e A psicologia da imaginação (1940).
No livro O ser e o nada (1943) Sartre retrata a consciência humana, ou o não-coisa (néant), em oposição ao ser, ou a coisidade (l’être). Segundo Sartre, a consciência é não-matéria e, da mesma forma, escapa de todo determinismo.
Sartre usa o processo fisiológico de digestão como metáfora para ilustrar o papel da consciência na incorporação do mundo, ressaltando seu lado ativo: “A consciência não é um recipiente passivo, mas uma força ativa que dá forma ao mundo” (Sartre, 1943). Assim, a consciência “digere” as experiências, integrando-as em sua identidade.
Em um paralelo à intencionalidade de Husserl, diz: “Conhecer é ‘explodir em direção a’, arrancar-se da intimidade úmida gástrica para se dirigir até lá, além de si, para o que não é si”. (1947) Deste modo, o ato de conhecer a coisa faz com que esta se transforme. (Feijoo, 2104)
Sartre utiliza o exemplo do olhar da aranha para explicar a experiência de ser observado e a objetificação que isso acarreta. Destaca a relação entre o ser-para-outro e a perda de liberdade.
“Eu vejo uma aranha, ela me olha. De repente, sou objetificado pelo seu olhar, sinto-me observado, preso em sua rede de significados.” (Sartre, 1943)
No exemplo, o filósofo ilustra a vulnerabilidade de cada um, a perda de autonomia e a necessidade de se construir a sensação de liberdade e controle.
Para Sartre:
“O outro é o mediador indispensável entre mim e eu mesmo: eu tenho vergonha de mim tal como apareço ao outro.” (Sartre, 1943)
Segundo Sartre, a vergonha é um sentimento que surge quando percebemos como somos vistos pelos outros. Esse sentimento revela que nossa identidade não é apenas uma construção interna, mas também é moldada pelas percepções e julgamentos externos. O olhar do outro nos força a ver a nós mesmos como um objeto em um mundo de objetos, retirando-nos da nossa posição de sujeito autônomo.
4. Conceitos importantes
a. Liberdade e Responsabilidade
“A liberdade é a capacidade de transcender o dado e criar novas possibilidades.” (Sartre, 1943)
Sartre afirmou que o ser humano é condenado a ser livre, o que implica uma responsabilidade absoluta por suas escolhas e, ao contrário de objetos inanimados, os seres humanos têm a capacidade de transcender suas circunstâncias e fazer escolhas autênticas que definem suas existências.
Na psicoterapia, isso significa ajudar o paciente a reconhecer sua liberdade e responsabilidade em suas decisões de vida.
Importa ao terapeuta ajudar o paciente a identificar áreas de sua vida onde ele pode exercer sua liberdade e assumir a responsabilidade por suas escolhas.
b. Liberdade em Situação
“A liberdade é sempre situacional; temos que fazer escolhas em determinados contextos.” (Sartre, 1943)
Segundo Sartre, a liberdade é sempre exercida dentro de contextos específicos, que implicam na busca de compreensão e de aceitação das limitações situacionais.
Cumpre ao terapeuta auxiliar o paciente a reconhecer e trabalhar dentro das limitações de cada situação, sem perder de vista sua liberdade e autenticidade.
c. Má-Fé (mauvaise foi)
“A má-fé é uma decisão de tornar o ser responsável pelo que ele não é.” (Sartre, 1943)
Segundo Sartre, a má-fé é a tentativa de escapar da liberdade e da responsabilidade, vivendo de acordo com os papéis e as expectativas externas.
A identificação e a superação de comportamentos e pensamentos de má-fé são aspectos cruciais na terapia existencialista.
d. Autenticidade
“Ser autêntico significa agir de acordo com seus próprios valores e não com aqueles impostos por outros.” (Sartre, 1946)
Para Sartre, ser autêntico é viver de acordo com seus próprios valores e desejos, em vez de seguir as expectativas alheias. A autenticidade é um objetivo central, cumprindo ao terapeuta trabalhar com o paciente para identificar seus valores genuínos, auxiliando-o a alinhar suas ações com esses valores.
e. Angústia Existencial
“A angústia é a experiência da liberdade.” (Sartre, 1943)
O conceito de angústia é uma das influências de Kierkegaard na obra de Sartre, que expressa que a angústia surge da consciência da liberdade absoluta e da responsabilidade que a acompanha. Por sua vez, o desespero é encarado como a falta de alinhamento entre o ser e suas potencialidades.
Na terapia, a angústia é vista como uma oportunidade de crescimento, cabendo ao terapeuta ajudar o paciente a entendê-la como uma parte natural de sua condição humana e a usá-la como uma motivação para a tomada de decisões autênticas.
f. A Condição Humana
“O homem é tanto em si mesmo quanto para si mesmo, existindo em uma tensão constante entre esses estados.” (Sartre, 1943)
Sartre descreve a condição humana como uma luta contínua entre o ser (en-soi) e a consciência (pour-soi). Compreender essa dualidade é essencial na terapia.
O terapeuta deve ser um facilitador para que o paciente possa explorar e reconciliar as diferentes partes de sua identidade, promovendo uma compreensão mais integrada de si mesmo.
g. O Outro e o Olhar do Outro
“O outro é o estranho que me confronta com minha própria estrangeiridade.” (1943)
Para Sartre, a estrangeiridade do outro refere-se à experiência de reconhecer a alteridade radical dos outros seres humanos. O outro é sempre, em certa medida, um enigma, algo que não pode ser totalmente compreendido ou assimilado.
“Precisamente quando eu experimento minha própria objetividade (para um sujeito alheio ou em face de um sujeito alheio), o ser-sujeito do outro é dado para mim de maneira completamente inequívoca” (Sartre,1943; Zahavi, 2019).
“O inferno são os outros.” (Sartre, 1944)
De acordo com Sartre, a presença do outro e o julgamento que ele implica podem levar à objetificação e ao sentimento de perda de liberdade do paciente.
Nesse sentido, a terapia busca recuperar a subjetividade, trabalhando com o paciente para desenvolver uma percepção saudável das relações interpessoais, promovendo a recuperação da liberdade pessoal.
h. Projetos de Vida
“A existência precede a essência; devemos criar nossa própria essência por meio de nossas ações.” (Sartre, 1946)
Para Sartre, a vida é um projeto contínuo de autocriação. A terapia deve ajudar o paciente a definir e perseguir seus projetos de vida, auxiliando-o a identificar e trabalhar por projetos de vida significativos, com vistas à promoção de uma existência autêntica.
i. Confronto com a Morte
“A morte é a última possibilidade do homem; ela dá sentido à nossa existência.” (Sartre, 1943)
A consciência da morte pode dar significado à vida.
Conforme Sartre a finitude é “condição necessária do projeto original do para-si” e “para que eu seja o que não sou e não seja o que sou” (Sartre, 1943)
A existência humana é marcada por uma tensão entre o ser e o não-ser. O “para-si” é definido por sua capacidade de transcender a condição atual e buscar o que ainda não é. Deste modo, a finitude demarca a urgência do processo de autocriação.
A terapia existencialista usa essa consciência, que não nega a finitude, mas motiva a busca por uma vida autêntica, como um catalisador para viver plenamente.
j. Psicanálise Existencial
“A psicanálise existencial tem como objetivo ajudar os indivíduos a recuperar sua liberdade e examinar suas escolhas fundamentais.” (Sartre, 1943)
Sartre propõe uma abordagem que se concentre na liberdade e nos projetos de vida, em vez de buscar articulação com o modelo inconsciente freudiano.
As intervenções não se pautam por relações de causa e efeito, mas do como o paciente se vê inserido nos contextos que compõem sua queixa e seu sofrimento.
O terapeuta usa princípios de psicanálise existencial para validar o sofrimento do paciente, ajudando-o a explorar seu potencial e escolhas de vida, a construir relações autênticas e assumir a responsabilidade por seus vínculos e escolhas.
Conclusão
Jean-Paul Sartre, um dos mais proeminentes filósofos do existencialismo, deixou um legado significativo tanto na filosofia quanto na prática clínica da psicoterapia existencialista. Sartre teve uma vida marcada por intensa atividade intelectual e engajamento político, edificando uma filosofia que enfatiza a liberdade individual, a responsabilidade pessoal e a autenticidade, conceitos que se mostraram fundamentais na psicanálise existencial.
Sartre desenvolveu uma visão unificada da consciência e do corpo, rejeitando o dualismo cartesiano e enfatizando que “o homem é uma totalidade corpo-espírito”. Suas obras, como “O Ser e o Nada” e “O Existencialismo é um Humanismo”, ilustram como a consciência humana é ativa e intencional, sempre moldando e sendo moldada pelo mundo.
No âmbito da psicoterapia, os conceitos de Sartre têm aplicação prática na abordagem dos dilemas existenciais dos pacientes. A psicanálise existencial utiliza a angústia como um ponto de partida para explorar a liberdade e a responsabilidade dos indivíduos, incentivando-os a viver de forma autêntica. Intervenções terapêuticas incluem a exploração da má-fé, o confronto com a morte e a busca de projetos de vida significativos.
A influência de Sartre na psicoterapia existencialista é inegável. Seu enfoque na liberdade situacional, na autenticidade e na responsabilidade pessoal fornece uma base sólida para ajudar os pacientes a entenderem e enfrentarem suas ansiedades existenciais, promovendo uma vida mais plena e autêntica. Sartre acreditava que a vida é um projeto contínuo de autocriação, e a terapia existencialista, inspirada em suas ideias, busca capacitar os indivíduos a tomar posse de sua liberdade e construir suas próprias essências através de suas ações.
REFERÊNCIAS
Feijoo. A fenomenologia como método de investigação nas filosofias da existência e na psicologia. Psic.: Teor. e Pesq. 30 (4), Dez 2014.
Kierkegaard, S. O conceito de angústia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2ª ed., 2010.
May, R. The Courage to Create. W. W. Norton & Company, 1975.
Sartre, J.-P. Entre quatro paredes (Huis Clos). Paris: Gallimard, 1944.
Sartre, J.-P. Esboço para uma Teoria das Emoções (Esquisse d’une Théorie des Émotions). Hermann.1939.
Sartre, J.-P. O existencialismo é um humanismo (L’Existentialisme est un Humanisme). Nagel, 1946.
Sartre, J.-P. O imaginário (L’Imaginaire). Paris: Gallimard, 1940.
Sartre, J.-P. O ser e o nada (L’Être et le Néant). Paris: Gallimard, 1943.
Zahavi, Dan. Fenomenologia para iniciantes. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.
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