A presente comunicação propõe pensar problemas de gênero, tópos do pensamento filosófico iniciático de Judith Butler, à luz de uma ontologia das possibilidades. Pretendo repensar as discussões balizadas pelas velhas estruturas normativas que, ainda hoje, permanecem assentadas nas categorias de gênero, sexo e binaridades. Requisita-se o ultrapassamento de tais discursos na tentativa de atingirmos uma outra região do pensamento, a saber, “o-sendo-do-ser” enquanto veritas transcendentalis. Portanto, re-anúnciar [Verzeihen] as velhas categorias redimensionará o nosso olhar para o que denominei “ato-de-ser” ou “ser- em-ato”, possibilitará pensarmos a constituição e desconstituição de novas identidades. Para tal percurso pretendo elencar: i) o que Judith Butler não alcançou em seus livros “Problemas de gênero” (1990) e “Corpos que importam” (1993) como uma ontologia das possibilidades e não uma ontologia da substância, ii) re-apresentar a parte final das disputações metafísicas na região das ontologias medievais e iii) propor um salto para além dos problemas de gênero em vista de uma ontologia do pensável enquanto abertura posta no plano do ser partindo das categorias existências em Martin Heidegger.
I. JUDITH BUTLER E O VELAMENTO
Em 1990, ano da publicação do seu livro intitulado “Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade”, Butler propõe uma genealogia e diz que a tarefa da sua investigação se centraliza e, num só tempo, descentraliza-se do âmbito das instituições definidoras do falocentrismo e da heterossexualidade compulsória. Butler se coloca na linha de enfrentamento com a história na tentativa de desestruturar as categorias formadoras do gênero passando pelas ciências da psique que estruturam o desejo como centro das decisões humanas. A filósofa sustenta a tese de que tais desejos sempre privilegiam um gênero em detrimento de outro mascarando os fenômenos de poder que mobilizam e acentuam as desigualdades.
Problemas de gênero está às voltas com a descaracterização [desintegração] das atuais categorias que reificam os discursos dominantes e performativos sobre o gênero, corpo, desejo e sexo, e busca no mesmo compasso descrever e por uma série de práticas que Butler chama de “parodísticas” e miméticas orientadas por práticas performativas que ela denominou “atos de gênero”. Com esse fito a pensadora tenta romper com as categorias de corpo, sexo e gênero “ocasionando sua ressignificação subversiva e sua proliferação além da estrutura binária.” (Judith Butler. 2003, p. 11)
O corpo se encontra nominado a partir de uma situação hermenêutica que circunscreve como o sexo deve ser compreendido (norma social), de tal modo que o corpo se torne objeto de inteligibilidade a partir de uma visão recortada e concebida historicamente. Aparentemente a autora sugere um abandono de uma causa finalística e, no entanto, reafirma a necessidade de “Uma coalizão aberta” (que pudesse afirmar novas) “identidades alternativamente instituídas e abandonadas, segundo as propostas em curso […]” para Butler (203, p. 37) tratar- se “de uma assembleia que permita múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e definidor.” (Parênteses do autor)
No último parágrafo da sua conclusão Butler afirma que não há ontologia de gênero, isto é, o gênero não constitui em si um status de ser. Não constituído ontologicamente, o gênero seria um não ser ou uma ausência de ser e consequentemente, o gênero não poderia ser pensado e nem problematizado. Desse modo, o gênero não estaria no plano do ser, mas apenas no plano da indiferença.
A precursora do movimento queer reafirmou que o seu projeto tem em vista uma genealogia da ontologia do gênero. Uma vez descrito o campo metodológico da investigação a autora esclarece que a sua tarefa visaria “compreender a produção discursiva da plausibilidade dessa relação binária e sugerir que certas configurações […] do gênero assumem o lugar do “real” […] (Judith Butler. 2003, p. 58) Nesse passo da exposição levantamos duas questões: i) seria uma genealogia mais fundamental do que uma ontologia? ii) Uma ontologia, qualquer que seja, não é um saber/compreender mais elevado e, portanto, mais apto a perscrutar os fundamentos últimos do que qualquer outra ciência regional?
Cf. Vídeo abaixo com a Primeira parte do seminário “Problemas de gênero à luz de uma ontologia das possibilidades.“
II. A CONFUSÃO DO SER A PARTIR DO DISCURSO QUE MANIFESTA O ENTE A PARTIR DO “É” DA CÓPULA
Tomado como “ser” substantivado pelo discurso que manifesta o ente a partir [άπò] do fenômeno [φαινόμενα] manifesto no discurso, a autora ainda continua amalgamada em uma ontologia do esquecimento uma vez que suas ambições visam os fenômenos acoplados que se mostram por meio das proposições enunciativas [άπόφανσις]. Neste sentido, o pensamento de Heidegger poderá contribuir para que a partir da sua ontologia fundamental sejamos capazes de realizar o salto rememorativo que põe luz no esquecimento da diferença ontológica bem como uma essencialidade não essencialista. Será que uma tentativa de problematizar o gênero à revelia de uma ontologia das possibilidades não privaria a própria categoria de uma abertura questionadora sobre o ser do gênero? Supondo que o gênero é uma abstração criacional do ente dotado de razão, não seria muito mais rigoroso questionar qual é o caráter transcendental do sujeito do gênero? Trataremos mais detidamente sobre essas questões no terceiro e último ponto da nossa comunicação.
III. DISPUTAÇÕES METAFÍSICAS
As questões de gêneros devem ser consideradas a partir das categorias modais do ser. Na unidade de sua estruturação tomaremos o ser no modo da constituição e desconstituição. Denominaremos de “ato” cada constituição-“em”-desconstituição, bem como seus opostos. Para cada ato, ser se-dá sempre e a cada vez como uma possibilidade do seu ser em questão. Ser como possibilidade “em”-ato-curso (familiarizado-[in]-curso) é o que compreendemos como “ato-de-ser”. Para essa tarefa consideraremos as categorias Platônicas dos “gêneros supremos”, as quais o ser, o movimento e repouso, identidade e diferença nos serão de grande valia.
A partir do legado platônico, toda tradição filosófica se movimenta por estruturas categoriais de compreensão e inteligibilidade. Há desdobramentos categoriais para vários gostos e intentos. Notadamente as dez categorias aristotélicas são as mais consideradas até então, e em que pese Kant na modernidade tenha criado suas categorias dos atos judicantes do sujeito cognoscente, indubitavelmente não pode ele mesmo escapar da autoridade de Platão e Aristóteles.
Dito isto, façamos uma digressão até os últimos instantes da metafísica medieval e o aparecimento da ontologia como ciência do pensável. Encontramos os calorosos debates sobre a metafísica de Aristóteles. Correntes, tomistas, escotistas e suarezianas se debruçam sobre o “objeto da metafísica”. Em torno dos debates Pereira chega ao limiar de tentar ultrapassar o “amálgama” onto-teo-lógico que orienta as discussões na metafísica clássica e medieval.
Importa pensar a “abstração” das essências no “como” [Modi] da indiferença que diz respeito aos predicativos transcendentais como bem, verdade e o próprio ente. Em Pereira estes transcendentais não permitem postulação indiferenciada da matéria por ultrapassarem o ente, ao contrário disso, a indiferença constitutiva da matéria revela a participação dos transcendentais nos entes materiais, mas também nos entes abstratos.
De modo premente, Pereira abre o caminho para que fosse possível pensar um “conhecer das possibilidades” indiferente do conteúdo efetivo in abstrato como separação da matéria. Em seu Isagoge publicado em 1598 Goclenius emprega o termo ontologia para teorizar uma oposição entre a filosofia primeira enquanto ciência do ente enquanto tal e a metafísica ou teologia enquanto ciência de Deus. Mas é em Jacob Lorhard a partir das influências de Timpler que o termo ontologia ganha o conteúdo que a modernidade e a pós-modernidade lançam mão. Timpler determinará que “O objeto adequado da metafísica se torna o puro pensável, não o real.” (Olivier Boulnois, 2015, p. 276, ed. Unisinos) Apesar disso a ontologia como ciência das possibilidades ainda não tomou corpo nos âmbitos intelectuais. Mas em 1609 Lohard populariza o pensamento de Timpler em seu Agdoas Scholastica o termo “ontologia” e desse modo diz Boulnois: “A ontologia nascente […] não é uma ciência real já que engloba todos os inteligíveis representáveis, que sejam possíveis ou impossíveis, “alguma coisa” ou “nada” […]” (Olivier Boulnois, 2015, p. 276, ed. Unisinos) Determinada desse modo a ontologia tem enquanto objeto “a totalidade do que é pensável”.
Cf. Vídeo abaixo com a segunda parte do seminário “Problemas de gênero à luz de uma ontologia das possibilidades.“
IV. AS CATEGORIAS EXISTENCIAIS NO PLANO DO SER
O gênero discutido no âmbito das categorias de inteligibilidade não alcança o elevado grau da humanidade. Razão pela qual Heidegger afirmar que “Como ec-sistente o homem sustenta o ser-aí enquanto toma sob seu “cuidado” o aí enquanto clareira do ser.” (Heidegger, carta sobre o humanismo, ano, p. 354) Para um melhor esclarecimento do que o pensador do ser está propondo, se-faz necessário um retorno a Ser e Tempo, quando Heidegger (2012, p. 139) dirá que: “O ser-que [essentia] desse ente […] deve ser concebida a partir do seu ser [existentia]. A existência tomada neste sentido “não tem e não pode ter a significação ontológica do tradicional termo existentia […]” (ibidem, p. 139) termo que mobiliza parte do esquecimento da diferença ontológica; situação que apresenta a clara posição problemática em que Judith Butler se coloca ao negar uma ontologia da subsistência com uma dupla negação: i) negar fazer uma ontologia da substância e desse modo desvelando uma outra negação inopinada ii) que é a negação do plano do ser, âmbito sem o qual qualquer modo de ser jamais poderá ser concebido como pensável. Heidegger arremata que “A essência do Dasein reside em sua existência. (ibidem, p. 139)
Antes de pensarmos sobre uma ontologia das possibilidades, possibilidades que já são- aí como escape, ainda que no inter-meio, das categorias estanques estruturadas nos discursos heterossexualistas, devemos voltar, uma vez mais, a nossa consideração ao plano do ser. Esse gesto nos mostrará como as categorias existenciais já sempre foram ontologias alternativas constitutivas e descontinuadas dos nossos atos-de-ser. Heidegger em carta a Jean Beaufret (ano, p. 357) escreve que “[…] o que importa na determinação da humanidade do homem enquanto ec-sistência é que não o homem é o essencial, mas o ser enquanto a dimensão do elemento ec-stático da ec-sistência.” O que está em jogo enquanto “aparente” encobrimento para Butler? As atuais categorias de gênero precisam ser desmontadas “ocasionando sua re- significação subversiva e sua proliferação [para] além da estrutura binária.” (Judith Butler. 2003, p. 11) Provavelmente o que se conquistará com esse intento seja apenas e tão somente um inflamento das categorias ressignificadas e como consequências a própria instabilidade no sítio das novas identidades. Nenhuma categoria pensada nos limites da subsistência (negada e assumida inopinadamente por Butler) é capaz de sustentar a complexidade dos atos- de-ser.
Contestando a posição sartreana sobre o humanismo para quem invariavelmente o homem já sempre se encontra no plano onde há apenas homem, isto quer dizer que “o existencialismo é um humanismo”, Heidegger insurge reposicionando o Dasein para o plano onde desde sempre este ente primariamente é enquanto “é”. Essa afirmação já se-faz presente em Ser e Tempo como já dissemos anteriormente: “pensado a partir de Ser e Tempo, dever- se-ia dizer: Précisément nous sommes sur un plan où il y a principalement l`Étre. (Sobretudo estamos em um plano onde há propriamente ser) (Heidegger, sobre o humanismo, ano, p. 357)
Seria possível renunciar o que Butler denomina de “atos performativos subversivos”? Certamente, sobretudo, com fito a pensarmos ser-em-ato ou ato-de-ser. Os próprios termos que proponho não se fecham em numerus clausus e, portanto, devem ser interpretados sempre à luz de uma ontologia das possibilidades. Pensemos como exemplo:
- Ato-de-ser
- Sendo-“in“-ato
- “Em” – “in” – fazer-se enquanto ato-de-ser, esse ente se-faz.
- Ser-em como trânsito
Desse modo, proponho pensar as identidades como ato-de-ser. Cada ato se-faz e perfaz enquanto atualidade. Sendo assim, o pensável à luz de uma ontologia das possibilidades está sempre no plano do ser como essencialmente cuidado, isto é, habitando e diligindo como aquele que cuida constituindo-se e cuida no ato de se desconstituir. Nossa proposta não enseja uma fixação do sujeito dos atos ou intencionalidades apriorísticas, mas apenas e tão somente ser-em-ato. Na encontrabilidade de cada ato importa ser na unidade antecipadora do ato- sendo-em-o-mundo, junto-a-entes intramundanos. Invariavelmente urge uma renúncia das categorias caducas no sentido de [re]anunciar novos modos de ser.
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