A razão escancarou a supremacia humana sobre a natureza humana. Temos, agora, “humanos sobre humanos”. Supremacismo.
KADU
Nosso desiderato “repousa” numa inquietação, isto é, numa tal disposição [Befindlichkeit] afetiva, num estado-de-ânimo [Stimmung] que nos mobiliza de volta para a própria condição existencial do nosso filosofar esquecido. Partindo do esquecimento do atual modi de filosofar, proporemos algumas questões “anticlimáticas” e, por ser assim, possíveis de nos inquietar em nossas posições prévias. A inquietação, se faz como, se fez para os pensadores originários e agora precisa ser, mais uma vez, de modo insistente, colocada sob à luz e endereçada a nós contemporâneos, no lugar próprio de onde emergem algumas questões, quais sejam: o que se ensina atualmente nas “academias” como filosofia poderá ser aprendido propriamente? De que modo a “filosofia” enquanto programa “ementado” poderá abrir as regiões de esclarecimentos e autonomia de quem se candidata ao filosofar? Pode o filosofar ser ensinado e aprendido? É a filosofia “algo” que pode ser tomado enquanto doutrina teorética do conhecimento e, portanto, com fins de mobilização na práxis social? Para tais questões estamos a caminho. Caminhos de pensamento na árida terra das pedagogias pré-programadas, apressadas, ementadas e funcionais. Neste diapasão, nossas considerações buscarão meditar alguns dos problemas relativos ao academicismo. O academicismo inadvertido precisa ser problematizado no interior da academia. Quais prejuízos tais comportamentos podem causar para o filosofar do ente filosofante? A própria filosofia, enquanto disciplina, não se acaba(?), por se tornar, em tempos atuais, comprometida quando à revelia dos seus pressupostos arcanos esquece desses mesmos pressupostos? Qual precisa ser a tarefa do pensamento, no âmbito da vida como um todo, diante do pragmatismo no ensino de filosofia? Na presente caminhada, tentarei aproximar o como [Modi] fundamental do verdadeiro filósofo, na perspectiva nietzscheana, do que seja o esclarecimento [Aufklärung]autônomo no pensamento de Adorno e Horkheimer e, por fim, rememorar Heidegger em seu pensamento sobre a filosofia enquanto clareira [Lichtung] do Dasein, como o quem propriamente já é para si mesmo esclarecido.
PROPOSIÇÕES
No fim da primeira parte da conferência “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento” publicada em 1964, Heidegger parece decantar em tom celebrativo o acabamento da filosofia como metafísica e escreve: “O fim da filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde. Fim da filosofia quer dizer: começo da civilização mundial (globalização) fundada no pensamento ocidental-europeu.” (Heidegger, 1989, p. 73)
Em 1969, na reedição dos fragmentos filosóficos da dialética do esclarecimento [Aufklärung], Adorno e Horkheimer mantém a sentença de que o desiderato do esclarecimento “[…] era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber.” (Adorno e Horkheimer, 2006) Por óbvio, os pensadores da “Dialética do Esclarecimento”, estavam desde o lançamento da primeira edição (1947) às voltas com o terror técnico causado, sobretudo pela segunda guerra mundial. Neste texto os autores escancaram parte estrutural do esquematismo racional moderno posicionando-se na mesma rota de colisão com o programa do esclarecimento ao sustentarem que “[…] a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal.” (Idem) As críticas sobre o programa do esclarecimento demarcam o tópos de onde emerge as nossas considerações.
Com o termo indústria cultural, os pensadores da escola de Frankfurt delimitam seus respectivos objetos de enfrentamento que vão desde as ciências modernas até a cultura pré-moldada manufaturada em série com a finalidade de manter sob a regência do esclarecimento as massas. Por indústria cultural, se reconhece um tipo de esquematismo calcado num sistema homogêneo-racional, atuante numa atmosfera de domínio calculador da natureza, de tal modo que os detalhes inadvertidos se tornem paulatinamente obliterados, bem como rechaçados nos mais diversos âmbitos. Sob a tutela do esclarecimento nada escapa. Nem a academia moderno-contemporânea estaria à revelia do esquematismo previamente moldado pela indústria cultural. No entre-meio, a indústria cultural agencia o modus operandi no qual os comportamentos e corpos já pensam previamente orientados para “produzir” esclarecimento. É o interior da academia, de um jeito sorrateiro, ainda quando cada um exerce o seu mister, que o sistema se efetiva. O esquematismo logra êxito quando o espírito do esclarecimento é convocado.
Na mesma medida em que a academia, sobretudo, quando tratamos do ensino de filosofia, “produz” o esclarecimento alimentando a sabedoria com fito de iluminar a civilização contra a barbárie, vemos o fenômeno do academicismo inadvertido que, desde sempre estratifica, no sítio acadêmico mantendo as posições de subalternidade. Um graduado é visto como um mero mortal para o especialista que por seu turno é um mero mortal para os mestres e assim segue-se uma verdadeira violência legada por um estrelismo próprio das culturas de massa. Ademais, urge em nosso tempo repensar o problema do sistema de ementação programática que previamente demarca o caminho a ser percorrido pelo entusiasta ao filosofar.
A frase do gato risonho para Alice que não sabia para onde ir, — “Para quem não sabe para onde ir, qualquer caminho serve!” — poderia servir de subterfúgio para o argumento de que o caminho do estudante de filosofia precisaria ser previamente determinado. Isso não se sustenta. Segundo a orientação de Kant, não saber o caminho e decidir por si é testemunho da saída do homem da menoridade intelectual. No fim das contas, o gato inculcou em Alice o dever de ter de saber o caminho para que ela pudesse chegar em algum lugar. Se seria bom saber previamente o caminho ou no caminho saber, isso não está em jogo aqui, afinal o que importa é manter-se à caminho. Ora, qual deve ser o caminho que o ensino de filosofia deve conduzir o entusiasta ao filosofar senão o caminho que é o seu próprio caminho de esclarecimento?
Para que possamos enfrentar essa questão, devemos realizar uma interlocução com um dos acadêmicos mais reacionários do século XIX.
Com o objetivo de criar uma atmosfera “anticlimática”, que de modo agudo nos inquiete em nossas posições prévias, se faz necessário nos colocarmos na condição para que possamos nos tornar a má consciência do nosso tempo. Um filosofar provocativo e direcionado para os nossos próprios comportamentos poderá nos revelar o que Nietzsche considera uma filosofia que enseja pena. Uma filosofia que se nega ao âmbito do encantamento, torna-se uma filosofia suspeita, algo que na negação se apoia num misticismo insuspeito em suas bases. Isto representa o que Nietzsche chamou de uma “[…] filosofia reduzida à “teoria do conhecimento […] é uma filosofia nas últimas, um final, uma agonia, algo que faz pena.” (Nietzsche, 2007, p. 95)
Ora, se um determinado modo de ensinar filosofia que se promove dentro do esquematismo e em seu fundamento visa o esclarecimento —, não realiza emancipação — então essa mesma filosofia, por certo, só poderá “produzir” pensadores umbilicalmente ligados aos mesmos esquematismos regentes e em vasta medida, opressores. Temos, desse modo, os trabalhadores filosóficos. Aqueles que não emancipados afogam-se no suor do seu trabalho braçal para manter toda a armação justaposta. Que tipo de filósofo é esse? “[…] um tipo sem nobreza […], que não domina, não tem autoridade nem auto-suficiência: ele possui laboriosidade […] aquele raio de sol de fama, aquela constante afirmação do seu valor e sua utilidade […]” (Nietzsche, 2007, p. 97) E nesse diapasão que “Os trabalhadores filosóficos formados segundo o nobre modelo de Kant e Hegel têm de estabelecer e colocar em fórmulas, seja no reino do lógico, do político (moral) ou do artístico, algum vasto corpo de valorações (verdades)…” (Nietzsche, 2007, p. 105) Em fina sintonia com o pensador do martelo, Adorno e Horkheimer tomam o esclarecimento [Aufklärung] como ofuscamento do caráter filosofante e emancipatório do homem em seu modo próprio de filosofar.
Diante de tais considerações perguntamos: o que é um autêntico filósofo? Para Heidegger o “homem” dá se a si-mesmo filosofando. O Dasein já quedou-se em si filosofando e nada de um “fora” que precisasse ser introduzido para “dentro” é realizável enquanto filosofia, e por que disso? A razão é que esse pensamento habitual de algo como introdução à filosofia “[…] repousa em uma ilusão fundamental. (Heidegger, 2009, p. 3) E para Nietzsche? Para Nietzsche “[…] os autênticos filósofos são comandantes e legisladores…” (Nietzsche, 2007, p. 105) O autêntico filósofo nietzscheano tem o poder de determinar a região “para onde” do pensamento e, portanto, o próprio gestar-se do pensável. Tomando rigorosamente o filosofar é morada constitutiva do Dasein, afinal “Ser-aí como homem significa filosofar” (Heidegger, 2009, p. 4)
Diante do que fora exposto, colocamos as questões: o ensino de filosofia é capaz de ensinar e desse modo fazer com que o filósofo aprenda como ser um filósofo? A filosofia, enquanto, programa acadêmico “pode” emancipar e, portanto, promover o esclarecimento existencial? Enfrentaremos essas questões partindo da análise dos verbos saber e esclarecer. Para saber filosofar nada “é” necessário. Já entendemos isso. No entanto, mesmo quando se compreende algo como não-necessário, isto é, há uma compreensão pré-ontológica, urge uma questão que nos permita uma interpelação que nos avie para uma região ontológica. Nesse sentido o quem que se compreende posto na questão, deve se perguntar: como fazer uma experiência com a filosofia? De que maneira é possível experimentá-la propriamente? Diante dessas questões surgem para nós dois modos de ser do filosofar, a saber: i) um pensamento vinculado a uma “teoria do conhecimento” e, desse modo vinculado à academia, e ii) um pensável que se dá existencialmente e, portanto, desde sempre constitutivo do Dasein.
Pensemos, pois, no caráter de esclarecimento, não como aquele modo moderno de destruição do encantamento do mundo, mas como um caráter próprio de abertura do Dasein em seu “aí”. Nietzsche na terceira parte das considerações extemporâneas “Schopenhauer como educador” (1874) diz que “Quando nos tornamos conscientes dessa singularidade, apresenta-se ao nosso redor um estranho brilho, o brilho do que é extraordinário.” (Nietzsche, 2018, p. 40) Nada nos impede de compreender o brilho que se faz na emancipação do pensador extraordinário como o desvelamento do Dasein enquanto clareira [Lichtung]. Ao realizar tal comparação, colocamo-nos novamente diante do encantamento do mundo. O mundo voltará a nos encantar outra vez. E por que? Por que para ser o filósofo iluminado, esse ente não precisa de algo ou quem o ilumine. Heidegger dirá: “Ele é “iluminado” […] não por receber a luz de um outro ente, mas porque ele mesmo é claridade da clareira.”(Heidegger, 2018, p. 381)
Há no mundo aqueles que filosofam. Os que se fazem a si-mesmos filosofando. Eles são e estão a caminho. Ser a caminho no filosofar não advém de um programa de ensino dessa ou daquela filosofia ou pensador(res), mas, ao contrário, eles fazem uma experiência “em” (no) filosofar. “É difícil aprender o que é [Tí estin] um filósofo, porque isso não se pode ensinar: há que “sabê-lo” por experiência…” (Nietzsche, 2007, p. 107) Ouso dizer que para filosofar, basta sê-lo. Não haveria esforço para isso? Certamente que sim. Um esforço para o desapego e a emancipação. Coragem de divergir, contraditar e se constranger com o orgulho de saber não poder aprender filosofia. Não saber filosofia como inserção cognitiva. Mas como construção, em sofreguidão, na própria responsabilidade de existir como ser-aí. Nesse sentido ninguém, “nem Schopenhauer como aquele ideal de educador” poderá construir “[…] as pontes sobre as quais apenas você deve atravessar o rio (fluxo) da existência…” (Nietzsche, 2018, p. 16) Insisto no esforço angustioso de fazer-se experiência “no” filosofar. De que modo faríamos propriamente essa experiência?
Proponho um gesto…
Para aprender a filosofar não é preciso que o Dasein se entregue ao esquematismo teorético. Ao contrário disso, o filosofante já, como dito, está a caminho. Ele se encontra num estado de ânimo que já o abriu para que pudesse ver no caminho o visto do caminho e nesse caminho permanecer realizando a travessia e, desse modo “[…] atravessar na ex-periência (fora e na experiência) significa: aprender.” (Heidegger, 2003, ps. 176/177) Neste sentido, convoco-vos a fazer uma experiência com o filosofar para além dos espaços acadêmicos. Isso não significa produzir um novo modo de ser filosofante, isso se torna desnecessário. Isso se torna faltoso. As considerações sobre o esclarecimento já testemunharam tal fracasso. Em nossa travessia, somos quem aprende, somos quem sofremos, somos aqueles que sustentados em nosso “aí”, fazemos. Importa que fique claro, dirá Heidegger: “Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência.” (2003, p. 121) Ao fazermos a experiência do filosofar, seremos novamente os emancipados, porque nos disporemos em harmonia com aquele thaumazein que nos interpela a caminho que se envia a nós e com ele nos articulamos.
Por fim, filosofar é ser alcançado por aquilo que já se endereçou a nós e, de modo especial, nos convoca e num só tempo nos transforma a caminho. A tarefa no ensino de filosofia, hoje, deve ensejar emancipar, e para isso já estamos atrasados?
NOTA: Comunicação para o III CEFIL – Colóquio do ensino de filosofia da UFPE
Comunicação realizada no dia 04/07/23
E-mail: contato@kadusantos.com.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Editora da Unicamp. Vozes, Rio de Janeiro, 2012.
HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. A essência da linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback Vozes, Rio de Janeiro. Universitária São Francisco: São Paulo, 2003.
HEIDEGGER, Martin. Os pensadores. O fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento. Trad. Ernildo Stein. Nova Cultural. São Paulo, 1989.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Trad. Marco Antônio Casanova.WMF Martin Fontes Ltda. São Paulo 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Schwarcz Ltda. São Paulo, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações Extemporâneas. Terceira parte: Schopenhauer como educador. Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. Madalena Ltda. São Paulo, 2018.
ADORNO, W. Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antônio de Almeida. Jorge Zahar Ltda. Rio de Janeiro, 2006.
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