O pensamento de Heidegger é abstrato?
Muito mais abstrata é a nossa ideia sobre o abstrato.
KADU
No início do segundo semestre de 2023, numa dessas belíssimas manhãs de sol no Recife, em um dos encontros do nosso grupo de estudo da comunidade heideggerfacil, propus tematizar o argumento do abstracionismo no pensamento de Martin Heidegger. A pergunta inicial que fiz foi a seguinte: quem compreende o pensamento de Heidegger como abstrato? A resposta foi unânime: “altamente abstrato!” Essa resposta resumiu, naquele instante, a concepção geral dos membros. De qualquer modo, aquela resposta abria uma região oportuna e, por essa razão, nada poderia nos impedir de habitar o preconceito do “abstracionismo” relativo ao modus de pensar heideggeriano.
No encontro, alguns acenavam para a inalcançabilidade do pensamento heideggeriano devido a dificuldade de acesso à linguagem. Outros legaram o abstracionismo às construções das frases do pensador, que no mais das vezes soam enigmáticas. Outros responderam que o ser, tema nuclear do pensamento de Heidegger, por não aparecer nas dinâmicas cotidianas, assim como o ente no modo da subsistência [Vorhandeheit] que aparece em nossas ocupações, acentua ainda mais a abstração. Curiosamente, essas colocações me fizeram repensar sobre a necessidade de uma abordagem pedagógica e um tanto mais “realista”.
Como seria possível uma “Pedagogia realista” para desconstruir o preconceito do abstracionismo no pensamento de Heidegger?
Antes de seguirmos em frente, devo confessar o quanto essa questão está eivada de inúmeros problemas, uns formais e outros estruturais, e, tudo bem por isso. Adoramos problemas. Dito e questionado, sigamos para onde nos orienta a questão e os seus problemas. Quero começar assentando três problemas que, em fina sintonia com o abstracionismo, se dão na medida em que pensamos um caminho possível para uma “pedagogia realista”. Vejamos:
- O pensamento de Heidegger não está às voltas com um realismo e, no entanto, nada pensado em sua analítica existencial se põe abstratamente. Nem se dá in abstrato, ser, nem a possibilidade de doação abstrata nega um realismo do ente.
- Não há, até onde conheço, proposições pedagógicas no pensamento de Heidegger em que pudéssemos determinar aprioristicamente uma metodologia que definisse, em todo caso, os modos de manifestação do ente em seu ser.
- Heidegger não coloca em questão o ser enquanto cognoscível abstrato. Ao contrário disso, ser como universalidade já sempre se dá posto, de modo que cada ente já “é” no plano do ser.
Como seria possível, então, uma relação entre “realismo” ou experimentação empirista do ente (em seu ser) e uma compreensão do ser do Dasein a partir do acesso às entranhas, “estranhas”, do ser enquanto velamento do ente? Vixe! Creio que a pergunta complicou muito mais do que aclarou, não é mesmo? Certamente. Mas, continue habitando comigo. Quero proporcionar a você, nessa jornada do pensamento, um modo de habitar o “abstracionismo” do pensamento heideggeriano e rever (re-a-ver) o quanto sua ontologia fundamental se faz tatuando-se em nossa cotidianidade mais inadvertida.
Os quatro pilares que atravessam a analítica do Dasein em Ser e tempo.
Neste momento do nosso percurso, consideremos “quadripartimentar” Ser e tempo. A ideia de “quadripartimentar” Ser e tempo em quatro pilares fundamentais surgiu quando eu estava preparando um manuscrito para expor numa aula. Esse pensamento se concretizou de forma tão didática que fui forçado a realizar um curso que denominei “Introdução à leitura de Ser e tempo”. Bem, depois dessa noção, eu pude verificar o quanto podemos tornar o pensamento heideggeriano, de certo, pedagogicamente acessível. Mas, não só isso! Podemos experimentar cotidianamente a quadripartimentabilidade (parece um trava língua, não?) que atravessa Ser e tempo aqui e agora, ainda que comecemos com uma abstração. Veja abaixo “os quatro”:
- Dasein (existência-ação)
- Mundo (situa-ação)
- Singularização (apropria-ação)
- Finitude (temporaliza-ação)
Tá, tá, tá —, entendi você — isso parece abusivo. E, sim! Eu abuso das palavras, mas tenho as melhores das intenções. Ouça o sentido dessa frase: “Seu ser se dá no modo como sua existência se encontra situada em busca de apropriar-se da sua finitude”. Poderíamos pensar em outros termos, a saber, “Ser temporalidade finita singulariza o ente que existe no mundo, mundo este, que lhe constitui.” Ou, “Como mundo, esse ente, embora fugidio, já se encontra entregue na situação que lhe interpela sua singularização enquanto ser finito.”
O que os quatro pilares e as frases acima deixam e fazem ver?
Parece que ainda estamos muito distantes de experimentarmos a empiricidade do pensamento de Heidegger… é, só parece. Observe que os 4 pilares que atravessam Ser e tempo podem ser compreendidos em sua unidade com uma simples palavra, qual seja, existência. O termo Dasein significa existência. Mas, para Heidegger a existência abre um sentido completamente diferente do termo existência compreendido como algo que está diante de…, defronte de um quem que aprecia, manipula e modifica.
Em Ser e Tempo o pensador de Todtnauberg diz que o sentido de existência que está em jogo como tarefa da sua analítica existencial é, propriamente, a existência de um ente privilegiado, que desde sempre se encontra amalgamado com a inquietação sobre o seu sentido de ser. Por óbvio, não encontramos nossos utensílios questionando o sentido das suas pobres existências. Nunca, ao menos eu, nunca encontrei a minha bike questionando seu modo de ser bike —, algo como — “Por que não sou uma moto-bike?” Ou “Porque não posso existir como uma bike francesa?”
Os quatro pilares não apontam para um termo enquanto termo. Não! As frases não apontam para uma construção meramente erudita. Nada disso acena para termos, palavras e/ou uma razão que flerta com abstração. Ao tomar Dasein, tomo a existência. Não tua existência, mas minha existência. Certamente que, tu tomas tua existência. “Tomar” no sentido de arrancar forçosamente, uma espécie de violência. Parece estranho? A cada instante, eu existo sustentando a responsabilidade de ter de ser. Tomo minha existência, ainda que imprópria, da temporalidade e sua morte implacável que “funga” meu pescoço a cada pequeno “folegar”.
Essa existência que é a tua, mas que também existo como minha é sempre um modo de já se encontrar em-o-mundo. Esse mundo “aí”, que nada tem a ver com planeta, subjetividade —, “o fantástico mundo do bobby” ou o “fantástico mundo de OZ”. Veja, nada aqui flerta com abstracionismo. O mundo no qual existimos é o nosso mundo fático. Isso! É a situação com a qual você e eu sempre nos encontramos às voltas absortos e ocupados. A sua volta ao mundo acontece e na acontecência do seu mundo você munda. O que significa mundar? Mundar é lidar compreendendo todo o aparato significativo que tu tomas e correspondes na relação com tudo que há no mundo, que nunca é um mundo do outro ou alheio a ti, mas o mundo que é teu mundo.
Olha lá aquele papagaio! Dependendo do que tu te relacionas agora — “aí” na tua situação e junto a (…) — o papagaio poderá ser aquele que compreendemos como pipa, ou aquele que compreendemos como ave. Isso é o que chamo de teia significativa. Heidegger usará o termo bedeutsamkeit que quer dizer significância. Gosto de olhar para uma teia de aranha e pensar que, em seu emaranhado, toda teia significante com a qual estamos sempre nos relacionando com os entes utensíliares encobre o ser enquanto tal. Isso é tão fácil de compreender, quer ver? Responda para mim: em um jantar romântico, o que poderia cair bem? Vinho? Sim? Ótimo! Vinho e jantar romântico combinam? Certamente! Vinho combina com jazz? Certamente! E com uma luz mais baixa? Queijos especiais? Massas? Com aquela troca de olhares? Sim!
A significatividade, em termos simples, nada mais é do que “algo que remete a algo”. Vinho remete a um jantar, que remete a jazz, que remete a queijos especiais ou massas e et cetera. Claro que o horizonte de significatividade de um vinho não fica adstrito apenas e tão somente a um jantar romântico, podendo ultrapassar esse âmbito e, no entanto, ao pensar em vinho logo somos remetidos a uma atmosfera mais celebrativa. Observe que nada disso é abstrato. Em toda essa descrição, uma experiência existida ou apenas compreendida sempre aparece em seu campo de sentido que na mesma medida corrobora ou não com o teu mundo.
E a singularização e finitude não permanecem no abstrato?
Não! Nem a morte nem a angústia são abstratas. E não são pelo simples fato de permanecermos fugindo tanto da angústia fundamental quanto da morte iminente. Veja lá —, se a angústia e a morte fossem acontecimentos abstratos e descolados do âmbito da vida fática, não seria necessário toda a correria cotidiana em busca de realização. Você já pensou que existimos como se a morte fosse um acontecimento para lá e distante de nós? É!! Parece que a morte atinge todos os outros menos o si-mesmo. Claro que essa compreensão fugidia se dá encobrindo para o Dasein a sua própria finitude. Por isso, compreensão sorrateira. E a angústia? Onde ela entra?
A angústia enquanto disposição fundamental coloca-nos diante da possibilidade mais própria e irremissível. Por sermos indeterminados e, por isso, ter de ser, existimos fugindo dessa indeterminação. Deixe marejar e veja o quanto essa fuga é existida cotidianamente. O tempo todo buscamos — ser, ter, fazer, produzir, programar — nos realizar como pai, mãe, bom amigo, o melhor mestre, doutor, profissional e nesse diapasão ter bens, ter uma “vida” [Leben] de luxo e proporcionar uma “vida” aos meus queridos e queridas mais próximos e próximas de mim.
A “verdade” é que não suportamos a descoberta e o enfrentamento de uma existência que não carrega nenhum sentido positivo. Me recordo agora de uma passagem do livro de Nietzsche. Um tremendo clássico do ainda jovem pensador, onde ele escreve sobre a captura do amigo de Dionísio, o sábio Sileno. O sábio Sileno ao ser questionado pelo rei Midas sobre qual seria a coisa que o homem pode conquistar, que seria a mais preferível — o sábio Sileno, com desmesurada indignação responde: “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento!” Nas palavras do sábio tem-se um aceno para o acaso da existência. Elas dizem respeito a não causa nem ocasião da existência. A existência se faz nada-ocasio-nada. O sábio Sileno questionará: “Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir?” E arremata: — “O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer.” (Nietzsche, 2007, p. 33)
Quem poderá lidar com a essência um tanto trágica da existência? O sábio Sileno escancara para o “homem” sua nudez existencial. Nudez que, no mais da vezes, é negada pelo próprio homem. Sua fuga é a fuga do seu abismo. Fuga da possibilidade de não mais ser. No entanto, não ser é o modo como esse ente já se constitui existencialmente. Por esse motivo temos a máxima heideggeriana que nos aponta para o imperativo “ter de ser”. Só tem de ser quem ainda não “é”. Só tem de ser quem se constitui por um ser, mas que esse ser nunca se realiza como projeto acabado e, no entanto, enquanto esse ente existe, ele se realiza “em” existido, ou seja, ele “é” seu ser enquanto vigora. Esse ente — o Dasein — é um sendo.
E agora?
Bem, propositalmente, eu deixei muitas pontas soltas. Quero que você cumpra a sua tarefa de pensar. Surgindo alguma dúvida ou contribuição, não deixe de me escrever. Entenda que o caminho do filosofar é o caminho. No caminho, caminhos se dão. Se por algum motivo, nada do que escrevi aqui fez sentido para você, devo suspeitar e você também de que o caminho do pensamento é puro gesto existencial. Gesto que acena primeiro para cada um de nós. Aliás, o gesto emerge de cada um de nós em correspondência com tudo o que há. Tudo que há, há no plano do ser e fora desse plano nada há. Em suma, o argumento da abstração do pensamento heideggeriano é refratário de um comodismo do pensamento que não nos constrange com o fenômeno da existência que está aí diante de nós.
NOTA: A ideia para o texto surgiu em um dos encontros do grupo de estudo da comunidade heideggerfacil
Texto criado em 23 de junho de 2023
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REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Editora da Unicamp. Vozes, Rio de Janeiro, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinburg. Schwarcz Ltda, São Paulo, 2007.
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